segunda-feira, 13 de junho de 2011

Meia hora de sessão

Tirei os óculos, esfreguei os olhos. Pela sombra visível da porta de vidro eu já sabia que ela estava à espera. Mesmo se a porta fosse de madeira, até de chumbo, o som muito alto dos fones dela e o perfume desgraçado que saía daquele corpo denunciaria. 
Ela estava ali.
Quando o relógio bateu 17h30, suspirei. Levantei, pronto pro combate, e abri a porta, sempre esperando um cumprimento que nunca recebia. Ela entrou como um furacão pela sala, como sempre fazia, jogou a bolsa em uma ponta do divã e sentou na outra, cruzando as pernas.
Paciente difícil, essa. Difícil, principalmente, porque era gostosa. Era complicado prestar atenção no que ela falava quando mudava de posição, alongava o pescoço ou ajeitava o sutiã. Eu ficava sempre na mesma pose, feito um idiota, assistindo ela ajeitar as meias e contar sobre a décima vez que atirou um copo em alguém, em um bar qualquer. 
Difícil, em segundo lugar, porque era totalmente doida. Vocês sabem do que eu estou falando, não do tipo doida que liga e desliga o fogão 14 vezes antes de sair de casa. Ela fazia perfeitamente aquele tipo de mulher meio louquinha, cheia de modernidades, perdida, ansiosa, intensa, sem pudor nem amarra social de qualquer espécie. 
Quando ela sentou e não acendeu o cigarro de costume, estranhei. 
- E aí, como passou a semana?
- Passei bem. Não volto semana que vem.
- O que houve, vai viajar?
- Não doutor, eu não volto nunca mais.
- Me conta o que aconteceu.
- Não aconteceu nada, fora o fato de que você está destruindo a minha vida.
Não pude disfarçar uma risadinha irônica, mas quando olhei bem pra cara dela vi que estava muito séria.
- E porque você acha isso? Você tem tido muito progresso desde que começou a vir aqui.
- Progresso pra você. Você está me deixando estável, e isso é tudo que eu não quero ser. Não me reconheço mais, não faço mais as coisas que eu gostava muito de fazer. Sabe quanto tempo não pego numa caneta, doutor?
- Ora, mas isso é normal, você está se descobrindo, mudando e com mais algumas semanas...
- Eu fiz uma pergunta, você não ouviu?
Às vezes ficava pensando em quem levava a sessão, se era eu ou ela.
- Há quanto tempo você não pega numa caneta?
- MESES. Você sabe o que é isso? Eu não passava uma semana sem escrever uns versos ou uma crônica.
- E o que te faz pensar que é culpa minha?
- Você está me deixando normal. Tá mandando pro saco tudo que existia em mim de instinto, vontade, ímpeto, força de pensamento e de expressão. Tá matando o que é mais importante pra mim.
- Mas eu estou te ensinando a viver melhor, a amadurecer.
- Eu não tenho nem 25 anos, então se o senhor me desculpar, eu não quero amadurecer. 
- Sua vida piorou tanto assim? Pelo que eu saiba você está indo melhor nos seus relacionamentos, não está mais tendo crises nervosas e não chora há semanas. Um dia você me disse que até gostava de vir aqui.
- E eu gosto. Mas gosto mais de quem eu era antes. Se eu tiver que viver uma vida instável pra produzir material literário, é isso que eu vou fazer. Escrever é parte de mim. Não quero viver sem esta parte.
- Ora, isso é algo que também podemos trabalhar, na semana que vem eu posso...
- Que parte do "eu não volto nunca mais" você não entendeu? 
- Tudo bem. Se você quer assim, você é maior de idade. E eu não acho que o seu caso é grave pra te obrigar a continuar comigo.
Concordei com ela internamente. O que ela ia virar, se resolvesse todas as suas questões? Cada problema resolvido era um passo na direção de se tonar uma mulher sem impetuosidade, totalmente cinza.
Realmente, não fazia o estilo dela.
Levantou, ajeitou o vestido, pegou a bolsa e saiu, colocando os fones.
- Qualquer coisa me liga, ok?
Minha resposta foi a porta do consultório fechando sem suavidade nenhuma.
Merda. Abri a agenda e risquei o nome dela da lista. As pacientes gostosas estavam ficando cada vez mais raras. A maioria achava um romance ou uma foda fixa e geralmente desaparecia. 
Abri um armário com chave, enchi um copo de whisky e mandei tudo pra baixo. Ia precisar de muitos daqueles pra aguentar a velha chata, dona de 5 gatos, que viria em seguida. Parece que são só essas que estão restando pra mim, ultimamente.
Tanto pra aprender e a gostosinha foge assim, feito um passarinho assustado. Lamentei nossa despedida. Pensei em muitos encerramentos diferentes, algo envolvendo o motel vizinho, talvez.
Mas me deixar aqui, parado, sem qualquer misericórdia, foi de foder com a porra toda. Além do mais, nem aproveitamos nosso último dia juntos. Foi só meia hora de sessão.
Mandei mais um trago e tirei o telefone do gancho.
- Jaqueline? Pode mandar a dona Rita entrar.