segunda-feira, 4 de julho de 2011

O casulo da autoconfiança

Ela me chamava de Baudelaire, mas só nos momentos íntimos. Ás vezes estávamos entre amigos e ela me vinha no ouvido:
- Vamos pra casa, Baudelaire?
E depois sorria de um jeito inexplicável, malicioso e ingênuo, como uma criança que admite o desejo pelo biscoito antes do almoço. Saía correndo e largava tudo que estivesse fazendo, me despedia apressado das pessoas mais sóbrias enquanto ela esbarrava de propósito com as pernas entre as minhas, andando na frente e mais devagar que eu. Não foi uma vez só que não conseguimos chegar no carro.
Ela morava sozinha, já havia viajado as cinco regiões do Brasil e eu era um rebelde sem causa, morando ainda na casa dos pais, prestes a terminar a faculdade de Psicologia na PUC e com planos não tão sérios de mestrado no Rio de Janeiro.
O sexo era ótimo, acendíamos um baseado antes da segunda vez e ficávamos contando as estrelas adesivas que estavam coladas no teto do quarto dela. Nunca consegui terminar a conta.
Depois que tudo terminava, ela às vezes se levantava, pegava um livro de cabeceira e ficava recitando versos só de calcinha, balançando os cabelos bagunçados e fazendo trejeitos com a mão esquerda, que segurava um cigarro. A fumaça desafiadora dançava em círculos pelo ar e eu, também fumando, ficava deitado fingindo a seriedade da platéia de um teatro europeu.
A nossa primeira vez, inclusive, foi seguida de uma dessas performances, daí o apelido. Eu pedi um copo de água e ela foi buscar, entregando-o para mim com uma reverência:
- Algo mais, gentil senhor?
- Não, muito obrigada, respeitável senhora. Agora você pode voltar a recitar versos pra mim - brinquei.
Imediatamente, ela endireitou o corpo e começou:
- "Vens tu do céu profundo ou sais do precipício, Beleza? Teu olhar, divino mas daninho, confusamente verte o bem e o malefício, e pode, por isso, comparar-te ao vinho"
Ela vinha caminhando para a cama com o corpo balançando suavemente, os seios mudando de forma e sombreado conforme eram atingidos pela luz amarela do abajur. Começou o próximo verso e foi passando a mão por todo o meu corpo, me olhando fundo nos olhos. A voz baixou:
- "Em teus olhos refletes toda a luz diuturna, lanças perfumes como a noite tempestuosa. Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna, que torna o herói covarde e a criança corajosa."
Colocou a cabeça em meu peito e beijou com carinho o meu pescoço. Sussurrei:
- Baudelaire. Estamos evoluindo.
Ela deu uma risadinha, eu fui por cima. Durante todas as preliminares, ela continuou recitando o poema com a respiração ofegante até eu colocar uma camisinha. Depois, fechou os olhos e não falou mais nada.
 Fumávamos em silêncio quando olhei pra ela e, como uma piada, disse:
- Acho que encontrei a minha "flor do mal".
- Meu bem, se esse for todo o mal que você vai querer que eu faça, diria que estou totalmente satisfeita com o meu posto, - passou a mão no meu cabelo - meu Baudelaire particular.

"É isto, então

é o mesmo que antes
ou que da outra vez
ou da vez anterior à essa."
Eu fico aqui sentada
com uma cara enorme de
palhaça
maquiada
olhando pra uma tela colorida
de computador,
com um termômetro embaixo do braço,
e só o que tenho
são os graus que indicam uma febre
e aquele gosto maldito e familiar
de decepção.
Penso que nós, mulheres,
viemos mesmo
dos palhaços.
A habilidade em contar piadas,
o polegar opositor,
o gosto pela pintura na cara
e a boca muito vermelha
são só resíduos.
O que fode tudo, mesmo,
é a gradíssima facilidade
em sermos feitas de trouxa.
E a normalidade
com que encaramos isso.
Lá fora, o abatedouro
continua funcionando.
Ouço as risadas
da vida universitária
daqui de cima.
Sigo esvaziando maços,
à espera
do toque no celular.
Eu espero que a vida em comum
reserve menos
do que isto.

Tempo verbal

Não avisaram no primário
sobre o futuro do pretérito, 
recheado com a triste perfeição 
do que seria, mas não foi.
Eu provaria, beijaria, cuidaria,
você ligaria, eu ficaria, eu gostaria.
Eu deixaria, conquistaria, eu amaria.

Nasci pro impossível.
Por pouco, não sou viável
e, muitas vezes, também me pergunto
como é que eu vim parar aqui.