quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Lá vamos nós, de novo

Ela caminhou pra fora do prédio no qual trabalhava e fez uma careta pra proteger os olhos do sol forte na Paulista. Soltou o cabelo e alongou o pescoço. Seria um longo dia.
Estava assim, parada, olhando a rua quando alguém saiu pela mesma porta que ela atravessara segundos antes. A curiosidade a fez virar o corpo.
Antes não o tivesse feito. A curiosidade matou o gato, não foi assim?
A figura que estava a poucos metros de distância era realmente indescritível. Ele tinha um cigarro na boca e tateava os bolsos da calça jeans à procura de alguma coisa. O cabelo muito preto brilhava no sol forte.
Ele devia ter nitroglicerina nas veias, não era possível.
- Procurando por isso? - ela sacudiu um isqueiro na frente dele.
Os olhos se encontraram e a explosão foi digna de um World Trade Center.
Ele tentou pegar o objeto mas ela tirou a mão rapidamente e acendeu o cigarro pra ele. Ela ficou olhando, estática, enquanto ele dava a primeira tragada e enquanto soltava a fumaça com a boca entreaberta, devagar.
"Estou perdida."
Ele olhou pra ela de novo e ela, sentindo as pernas bambearem, colocou as mãos no bolso e se virou de frente pra avenida.
- Posso saber a graça da minha salvadora particular?
Sem retribuir o olhar, ela corou e desejou com toda a força ser negra, ou mulata, ou vampira, ou completamente sem coração pra não ter as bochechas vermelhas denunciando tudo daquele jeito.
Apresentaram-se e trocaram um beijo no rosto. O estômago dela devia estar do tamanho de uma noz, a essa altura.
- Trabalha por aqui?
- Trabalho em qualquer lugar. Minha função principal é fornecer isqueiros pra jovens do sexo oposto parados na Paulista.
Ele riu da piada. Ela baixou a cabeça, sem graça.
- Já que é assim, acho que vou jogar o meu no lixo.
O sorriso dela foi de orelha a orelha e ela sentiu o sangue subindo pras faces de novo. Olhou bem fundo nos olhos dele:
- Já que é assim, acho que nos encontraremos em breve.
Virou as costas e entrou rápido pela mesma porta da qual saíra, num movimento digno de uma peça de teatro. Olhou de relance pra trás e viu que ele assistia seus passos. O elevador, graças a Deus, estava no térreo. Ela entrou num salto e apertou o seu andar várias vezes.
Toda aquela enxurrada de sentimentos era macabramente familiar. Ela estava muito ciente do que vinha depois e tomou uma grande decisão. Nunca mais ficaria parada naquela mesma esquina.
Ela sabia muito bem o que meninos como aquele podiam fazer e não ia conseguir passar por tudo aquilo denovo. Pelo menos não ainda. Perguntou a si mesma quanto tempo aquele luto ridículo ia durar e perdeu o fôlego lembrando da dinamite em forma de gente que tinha visto à pouco. O demônio a tentava da maneira mais suja e apelativa. Alguma coisa dentro dela se rendeu.
"Semana que vem, quem sabe."

Refrão

Quando escrevo,
não tem música.
Meu sentimento
não é refrão.
Nunca fui muito
de redondilhas.

Eu sou toda
solo instrumental
desrespeitando
tempo e compasso.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Trem em fuga

Segundos antes do primeiro beijo, recuei o corpo, sorri e disse pra ele que eu era um trem descarrilhado em fuga e a caminho do inferno. Perguntei, em tom de desafio, se ele queria embarcar.
Ele pegou na minha nuca com força e carinho e me sussurrou no ouvido que não era à toa que usava a camiseta do ACDC.


"You know, she's just like a
runaway train.
(Running right off the track)
She's coming off the track, now!
Runaway train..."
ACDC - Rock'n'roll Train

Não agora

Meus poemas não são declarações.
Não são atos políticos.
Não são atos de amor.

Meus poemas são palavras
das quais fico grávida e
depois de longa gestação interior,
coloco, dolorosamente, no mundo.

Meus poemas são pássaros.
Alguns com a asa quebrada,
outros com a perna ferida.
Cuido deles como filhos,
mantenho-os num ambiente recluso,
até que estejam preparados
para voar e me abandonar de vez.

Meus poemas são companhia.
Meus poemas amadurecem e,
como adolescentes,
abandonam, cruelmente,
a casa maternal.

Meus poemas são amigos
que eu seguro furiosamente comigo
até que se tranformem em força
e sejam incontroláveis.

Não me recriminem, pois,
pela relutância em escrevê-los.
Faço-o assim porque não os quero livres.
Faço-o assim porque não quero a solidão.
Não agora.

domingo, 17 de outubro de 2010

Encontro

O dia que amanhece, amanhece diferente pra mim. A estrela que brilha, tem luz diferente pra mim.
Dentre milhões de pessoas em milhões de circunstâncias banais, tudo conspirou pra que eu só enxergasse você. Agora, pelo menos nessa dimensão, nesse tempo-espaço, somos parte um do outro.
Palavras, que sempre me vêm à cabeça tão facilmente, se calam cheias de respeito, diante do ocorrido. Destino? Retorno? Encontro?
Só agora parei pra pensar na força arrasadora da palavra "encontro".
"Encontro".
Simples. Assustadoramente simples, pra algo que promete mudar minha vida, mudar a mim, mudar os tempos futuros além da minha forma transitória nessa existência, mudar o brilho de uma estrela remota e ignorada a anos-luz de distância.
Tem uma voz dentro de mim que me avisa como vai ser intenso o que vem por aí. A voz me diz como você é único e eu sorrio comigo, concordando. A voz especula como você deve ser em situações diferentes dessa vida e eu me encho de certezas, mesmo sem conhecer nada de você. A voz me diz que você é perfeito pra mim e eu confio, ciente da inteligência maior que está por trás do que vai acontecer. A voz me diz que não vai ser fácil, mas eu prometo a coragem dos que amam em troca do destino final.
Logo eu, que já briguei tanto com a voz. Logo eu, que já ignorei tanto a voz. Bastou baixar a guarda por alguns segundos que quando dei por mim, estava denovo de tête-à-tête com a voz do meu coração.
Só agora parei pra pensar na força arrasadora da palavra "encontro".
É inegável. É definitiva. É atemporal. É crua. Independe de adjetivos. Dispensa grau de intensidade. Não forma locuções. Não se faz verbo. Não tem origem. Não tem fim.
A voz estava certa. Não é amor.

É encontro.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Lápis

Chegou em casa, acendeu a luz. O branco do papel atingiu-lhe as retinas e quando deu por si, já estava sentada em frente a mesa.
Baixou os olhos e suspirou. Previu outra noite em claro, relembrando detalhes, refazendo diálogos, reconstruindo sua particular cena do crime.
Crime sem morte.
Nem a dela mesma, por mais que desejasse isso.
Pegou o lápis. Apontou.
Maldita semente. Maldito gerador de idéias ligado dentro dela. Maldito sentimento acordando milhões de palavras que gritavam até serem postas pra fora.
Maldito amor.
Ela olhou em volta e riu, com pena de si.
Mais um papel escrito não significava nada pra ela.
Tinha gavetas deles.
Primeiro era o brilho, a euforia, a luz que cegava tudo. Depois era a decepção e no fim das contas, ela se sentava naquele mesmo lugar pra mais uma sessão de quimioterapia cruel, que destruía o sentimento e junto destruía (quem sabe muito mais) o interior dela mesma.
Sentiu raiva.
Pensamento é doença dos olhos, não é isso que haviam lhe dito? Então o amor, que desencadeava tudo aquilo, era doença? Era câncer asqueroso que a impedia de olhar o céu, de sentir o gosto do café, de se esquentar ao sol?
Nada ia mudar. Escrevesse ela uma Bíblia, nada ia mudar. Suas emoções nunca seriam mais brandas. Ela era assim desde pequena.
Olhou o próprio corpo. Havia crescido, e era adulta agora. Tinha caixinhas de leite pra comprar, contas de luz pra pagar, chefe pra obedecer. Se dormisse agora, teria ainda três horas de sono decente antes de o despertador tocar.
Olhou o lápis, sem suportar mais o peso dos próprios pensamentos.
Precisava mesmo daquela catarse escrava e infeliz?
Olhou os calos nas mãos. Lembranças de outras noites, mais longas que aquela, mais frias que aquela, vieram-lhe a cabeça.
Sorriu. Sentiu-se livre.
Rasgou o papel nos pedacinhos mais pequenos que conseguiu.
Depois, fechou os olhos e, com um estalo, quebrou o lápis.

Esperar

Por não ser aceita por inteiro e por não ver cumpridas minhas expectativas, neguei tudo pra você, objeto da minha proteção.
Às vezes me pergunto se eu estou no direito de negar cuidado pra alguém, especialmente pra você, que eu ajudei durante tanto tempo, mas que sei que ainda precisa de mim.
Eu me pergunto o que acontecem com os anjos da guarda. Quem cuida deles?
Sinceramente, eu cansei dessa função.
Meu lado egoísta e infantil quer vingança, quer beber em outra fonte, quer ser feliz só de raiva. Ao mesmo tempo, sei que esse não é o caminho pra mim.
No que a gente precisa se ajudar? O que a gente tem que se ensinar que dói tanto, e que por isso é tão importante?
Afinal, qual é o meu papel nessa história? O que eu devo fazer nesse palco?
Como boa marionete do mundo moderno, fico perguntando o que os outros acham enquanto não consigo achar a resposta em mim mesma. Preciso dessa resposta e sei que é só de mim que ela vai vir.
O que arde em mim é isso, é essa ansiedade de viver, essa certeza de que vai acontecer muita coisa, mas que talvez não seja o momento ainda.
Tenho esperanças de que o bem vá truinfar nessa vida terrena nossa. Tenho essa ridícula impressão de que fui prejudicada por uma força muito baixa com uma intenção muito podre. Acredito que tudo isso provocou grande sofrimento (e grande aprendizado) pra nós dois.
Quem sabe a gente não precisava viver esse obstáculo?
Só sei que uma vez livre dessa força horrível, eu vou conseguir cumprir totalmente o meu propósito nessa vida, sem dúvidas nem fraqueza, só força e coragem. Força que já vem, talvez, de outras vitórias em vidas anteriores, ou que vem, talvez, da perspectiva de vitórias futuras no mesmo embate comigo mesma.
Talvez você seja só objeto da minha proteção, e não da minha paixão.
Talvez pra vencer eu precise separar isso.
Talvez pra vencer eu tenha que esperar um amadurecimento que ainda não tenho e que estou muito longe de ter.
Talvez nas vidas futuras as respostas venham e a gente finalmente consiga dançar essa música até o final.
Talvez eu tenha que esperar até lá.
É que esperar dói tanto.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Exatamente assim

Ela colocou o copo de cerveja na mesa de repente, olhou bem fundo nos meus olhos e disse:
- Preciso de você. Preciso de alguém que me faça sofrer de amor.
Ri da honestidade fora de hora, mas o rosto dela continuava sério. Fiquei sem graça e fiz a pergunta óbvia.
- Por que?
- Quero escrever um livro até os 27 anos.
Parei por um momento pra analisar a proposta e entendi as razões dela. Artistas são especiais por isso: sofrem e sacrificam sua felicidade pra produzir. Eu bem sabia o que era aquilo. Suspirei.
- E o que eu preciso fazer?
Ela sorriu e, colocando o corpo bem perto do meu, sussurou:
- Continue exatamente assim.

Cuidado

Depois de algumas horas juntos, muitas pro mundo e poucas pra ela, os dois andavam de mãos dadas até o ponto onde passaria o ônibus que o levaria pra casa. Ela estava com o braço em volta dele, numa tentativa inútil de mantê-lo ali, com ela, longe dos afazeres do mundo e das obrigações cotidianas que afastavam os dois de maneira cruel.
O ônibus se aproximou do ponto e eles levantaram juntos em total silêncio. Beijaram-se tão longamente quanto o momento permitiu e trocaram palavras de despedida. Quando ela se soltou totalmente dos braços dele, ouviu ele dizer em voz mais alta:
- Cuidado, tá?
Ela virou as costas e começou a caminhar os poucos metros até seu apartamento com aquilo na cabeça. Cuidado?
Ele se preocupava com ela. Queria que ela tivesse cuidado.
Ela olhou em volta. Como nunca tinha feito antes na vida, verificou se estava sendo seguida. De repente, tudo ficou extremamente perigoso. Eles ainda tinham muito por viver, e para isso era preciso que eles continuassem inteiros, logo, era preciso que ela tivesse cuidado.
Anos de loucura, de atravessar a rua sem temer o carro que vinha, de dirigir acima do limite de velocidade permitido à noite, de beber além da conta nos finais de semana, de descuidar da saúde, de andar com os cadarços do tênis desamarrados e de tomar remédios sem prescrição médica passaram pela cabeça dela.
Será que o modo como ela tinha vivido nesses vinte anos de existência tinham sido colocados em cheque por uma simples palavra ao final de uma despedida?
Cuidado! Ironia da parte dele pedir pra ela que tivesse cuidado. Ele não a conhecia? Não sabia que ela nunca tivera medo da morte, medo do perigo, medo do risco de qualquer coisa? Como pedir isso justamente a ela?
Quando entrou em casa, verificou duas vezes se a porta estava realmente trancada.
Anos de vida desregrada foram por água a baixo.
Cuidado. Ele pediu para que ela tivesse cuidado e, daquele momento em diante, ela se cuidaria por causa do amor.


"Que ela se defenda, a minha amiga
Contra tudo o que anda, voa, corre e nada, e que se lembre
Que devemos nos encontrar, e para tanto
É preciso que estejamos íntegros, e acontece
Que os perigos são máximos, e o amor de repente, de tão grande
Tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil."
Vinícius de Moraes

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Árvore

- Mas, amiga, ele não pode ser tudo isso.
- Sim, mas a parte dele que não for, não me importa.
- Você conserta! - riu. Ela não entendia. Ela não estava apaixonada.
- Não. Ela fica lá, pra me lembrar que esse é o imperfeito planeta Terra. Pra me lembrar que fomos divididos na criação e que adquirimos defeitos nas nossas reencarnações procurando um ao outro.
- Será que não é melhor você se afastar dele?
- Definitivamente é. Mas não posso. Ele é parte de mim. Agora que finalmente nos encontramos, é apenas óbvio que eu siga com ele.
- Você é nova demais. Ele não é o único.
- Talvez não, mas agora é. O agora pra mim é tudo. Maldito modo de ver a vida. Não quero mais esse papel de princesa sofrida na peça. Dá pra trocar pelo de árvore?