terça-feira, 30 de novembro de 2010

Super-herói

Senta, amigo,
que o "S" no meu peito
está gasto,
está puído.
Senta, amigo,
que o bar está só abrindo
e a lua acabou de sair.
Senta, amigo,
que a visão de raio x
não me ajuda em nada,
que sentimentos são invisíveis
e eu não consigui achar nenhum.
Senta, amigo,
que esse maço tá só no começo
que tem uma garrafa cheia na mesa
que eu planejo estragar muito
esse meu corpo de aço
essa noite.
Senta, amigo,
que eu desviei de bala, arpão,
faca, granada e canhão
e não consegui sequer
desviar o olhar do dela.
Senta, amigo,
que de todas as armas da vida
só me atingiu uma
arma-amor, amor-ferida,
ferida-buraco,
que não fecha nunca.
Senta, amigo,
que de nada vale a luta,
que é inútil essa vida fajuta,
nesse mundo belo e filho da puta.
Senta, amigo,
que de tudo que eu salvei
não sobrou um bem-me-quer
não sobrou aquela mulher,
que de "S", só tenho o sozinho.
Senta, amigo,
que de super, não tenho nada
só a super solidão infinita,
só a super solidão insondada.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Escolha um fardo

Quando acordei, estava num colchão no chão do quarto dela. Ela dormia profundamente na sua própria cama. No criado-mudo ela deixou todo tipo de comprimidos pra ressaca, uma garrafa cheia de água e um balde, caso eu quisesse vomitar. Levantei, tomei uma aspirina e voltei a deitar, totalmente sem forças pra questionar qualquer coisa. Só quando o remédio começou a fazer efeito foi que eu lembrei tudo que tinha acontecido.
Eu já estava a não sei quantas horas deitado na calçada quando ela me achou. A princípio não percebi que era ela. Era um alguém qualquer que passou a mão na minha cabeça e me levantou até eu ficar sentado. Permaneci de olhos fechados.
- Gente, espera. Não posso deixar ele aqui - ela dizia e tentava me levantar. Chegou mais perto, senti o perfume. Era ela, sem dúvida nenhuma.
- Você conhece esse cara?
- Conheço. Não posso deixar ele assim, me ajuda a carregar ele pro carro.
- Eu não vou levar isso aí no meu carro, não. E se ele vomitar e sujar tudo?
- Se você não me ajudar, eu levo sozinha. Minha casa não é tão longe.
- A escolha é sua.
Ouvi enquanto as outras pessoas se afastavam. Ela tentava me levantar enquanto dizia:
- Vai ficar tudo bem. Eu vou levar você pra casa, você vai melhorar.
Pra casa? Ela ia me levar pra qual casa, a dela ou a minha? Se fosse pra dela eu não queria ir, ela sabia de todos os motivos, já tinhamos conversado sobre isso uma infinidade de vezes. Pra casa dela eu não queria ir de jeito nenhum.
Fazia meu máximo pra ficar de pé, mas ainda assim meu corpo bêbado era pesado pra ela. Parei pra vomitar duas vezes no percurso. Ela segurava minha cabeça e continuava falando palavras doces, até que parou.
- Pronto, não falei que ia ser logo? A gente já chegou.
Ela abriu a porta, me sentou no sofá da sala e tirou meu tênis, minha camiseta. Me levou até o chuveiro e abriu a torneira.
- Ainda tem algumas roupas suas aqui. Vou lavar essas - dizia enquanto me deixava completamente nu.
Eu já tinha caído no chão do banheiro quando ela fechou a porta. Sentia a água correr pelo meu corpo mas não conseguia abrir os olhos nem por decreto. Tinha ânsia mas não saía nada.
Nem sei quanto tempo fiquei parado ali, debaixo d'água. Ela abriu a porta do box e fechou a torneira.
- Chega de água né? - tinha uma toalha nas mãos e começou a me enxugar. Sentei na privada fechada do banheiro enquanto ela esfregava, devagar, o meu cabelo molhado.
- Olha, suas roupas devem secar até amanhã. Por enquanto coloca essas. - e deixou na minha mão uma camiseta, uma cueca e uma bermuda de pijama que eu tinha esquecido lá fazia algumas semanas.
Saiu e fechou a porta. Com alguma dificuldade, coloquei a camiseta e a cueca. Depois disso, encostei a cabeça na parede e perdi a consciência. Ela deve ter me carregado pro quarto.
"Só podia ser isso."
Entre pensamentos, voltei a dormir. Quando acordei, algumas horas depois, o quarto estava vazio. Abri a porta e ela lia na sala, o sol entrava pela janela e o som estava ligado, bem baixinho.
Ela não reparou minha presença e continuou lendo, concentrada. Ás vezes tragava o cigarro e desviava os olhos do livro pra não errar o cinzeiro.
Ela era linda e não houve um só dia no qual eu não pensasse nela, desde que tudo havia terminado. Quando eu deixei algo tão bom quanto ela virar uma ameaça pra mim? Afinal, o que eu temia tanto? Qual dos fardos é o mais leve, o do medo ou o da saudade?
Ela olhou pra mim de supetão e começou a gargalhar.
- Qual é a graça?
- Você devia se olhar no espelho. Está parecendo um fantasma.
Olhei pra baixo e vi que estava quase nu. Tarde demais.
- Senta aqui, que eu vou pegar alguma coisa pra você beber. Sua roupa deve estar quase seca.
Sentei no sofá enquanto escutei ela colocar gelo no meu copo.
"Com gelo, do jeito que eu gosto. A desgraçada só acerta."
- Coca com gelo, do jeito que você gosta, né?
- Obrigado.
Ela voltou a posição anterior e ficamos em silêncio.
- Tá lendo o que?
Ela colocou o livro de lado antes de responder.
- Nada demais. Já tá melhor?
- Tô sim, obrigado por tudo. Desculpa o trabalho...
- Que trabalho, que nada. Você não incomoda.
Saco. Agora ela estava me olhando daquele jeito, parecia que decifrava tudo, não tinha como esconder nada dela. Baixei a cabeça.
- Não sei porque não confio em você. Desculpe.
- Você não confia em mim porque não quer. Nós dois sabemos disso.
- Não, não é isso...eu não quero fugir de você, eu quero confiar em você, eu quero você, mas...
Ela chegou com o corpo bem perto do meu e continuou me olhando. Se eu não fizesse nada, o pior ia acontecer. Se eu não esboçasse movimento ou reação verbal, ela me beijaria e apertaria, com luva de pelica, o botão que detonaria toda a sanidade que ainda restava em mim.
O que fazer, meu Deus?
Olhando pra ela eu chamava por Deus, mas que diabos! Eu nem acredito nele. Respirei fundo e tentei pensar.
"Calma, cara, você precisa racionalizar. Pense: o que você quer? 'Meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer.' Coitado do Mário de Andrade, ele era só mais um desgraçado, como eu."
Engoli em seco.
"Decide, infeliz! Qual cruz você quer carregar? Afinal, nesta merda de vida ingrata, qual dos fardos é o mais leve, o do medo ou o da saudade?"

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Bolso vazio

Eu estava sentada
com os pés pendurados pra fora
da varanda da casa dos meus pais.
As estrelas pareciam
olhos de Deus.
Aquela cidade tem
as estrelas
mais lindas
que já vi.
Pena que lá as pessoas
são bonecos inúteis
cheios de espuma
e merda fresca.
Respirei o ar noturno
coloquei as mãos nos bolsos
estava espaçoso
porque estava vazio.
Afinal, o bolso
serve pra aquecer as mãos
ou levar coisas consigo?

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Conclusões

Conclusões. Ah, as conclusões...
As conclusões que eu tiro ou deixo de tirar sobre fatos são problema meu.
Conclusões são perigosas. Conclusões matam correntes de pensamentos. Conclusões nunca são satisfatórias, nunca são esclarecedoras, nunca vêm na hora certa. Li em algum lugar que quem pergunta algo muda até receber a resposta, e a pessoa para quem a pergunta foi feita muda no decorrer do tempo entre a colocação da dúvida e a emissão de um parecer. Algo baseado no rio maldito de Heráclito.
Desse modo, fatos são obtusos. Demonstrações não são nada além de atitudes confusas filtradas por uma imensa barreira entre o pensar e o agir. Conclusões são extremamente traiçoeiras e eu ainda teimo em levar tudo a ferro e fogo.
Certezas são, de um certo modo, viciantes. Convicções são cancerigenamente seguras. Uma situação, mesmo que imaginária e negativa, é melhor do que a incerteza de que as coisas sejam mais brilhantes. Sou viciada em realidades extremistas e mais viciada ainda em tirar conclusões errôneas de tudo que vejo. Se isso é negativo? Bem...
As conclusões que eu tiro ou deixo de tirar sobre fatos são problema meu.
E de mais ninguém.
Olho pra janela do prédio onde trabalho e vejo as pessoas andando apressadas pela Paulista.
A primeira refeição sólida que fiz depois de alguns dias continua embolada na minha garganta.
Acho que tô digerindo outra coisa, uma coisa muito maior, um bolo alimentar imenso que eu me forcei a engolir sem motivo definido.
Com um suspiro fundo, volto ao trabalho.
Antes não tivesse comido.
Antes não tivesse nada no estômago.
Antes não tivesse nada no coração.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

História

A gente tava na cama
com três cobertores bagunçados
cobrindo nossos corpos cansados.
Contei pra você
sobre o meu dia
e sobre a mulher que chorava
dentro do metrô.
Você disse:
"isso
dá história".
Só a gente
que não deu.

Telefone

O telefone tocou. Pra variar, não era engano.
- Por favor, a senhora Giovanna?
- Sim, é ela mesma.
- Boa tarde, aqui é da Mastercard, tudo bem com a senhora?
- Você quer REALMENTE saber?
- Bom, estamos ofererendo cartões de crédito com vantagens especiais para a senhora e...
- Com quem falo?
- Com o Vanderlei, senhora, aqui é da Mastercard...
- Então Vanderlei, você me perguntou se está tudo bem, não é isso? Digo que não, não está. Fui demitida, estou na quinquagésima decepção amorosa, minha louça está suja e não tem nem um copo limpo pra beber água, o gás acabou ontem, o leite também, tenho um trabalho pra amanhã que eu nem comecei, a porta do meu guarda-roupa está quebrada, meus amigos estão ocupados demais pra me ajudar com qualquer coisa...
- Entendo, senhora Giovanna, estou te ligando em nome da Mastercard para oferecer...
- Pois é, Vanderlei, eu estou muito decepcionada com a vida, entende? Sinto como se tudo que antes tinha muito valor agora está murchando sem o meu controle. Sinto como se toda a minha vida estivesse lentamente se resumindo a nada e como se meus sentimentos bons estivessem todos indo pra um lugar muito longe sem possibilidade de retorno.
- Entendo, senhora Giovanna, mas nós, da Mastercard...
- Sabe, sinto que tudo ao meu redor tem muito mais a me oferecer, mas não sei o que falta, nem o porquê. Hoje em dia não temos estímulo externo suficiente para entender a nós mesmos ou descobrir o que queremos do mundo, não é mesmo?
- Sim, mas com as vantagens especiais do cartão de crédito Mastercard...
- Aí é que está o problema, né? Você me perguntou se está tudo bem mas na verdade você não se importa realmente. Ninguém se importa. Cumprimentamos pessoas em situações sociais e todas perguntam o automático "tudo bem?" só esperando a regular resposta afirmativa. Acontece que a minha resposta não é afirmativa, você entende? NÃO É. Não posso continuar a mentir, mas ao mesmo tempo não posso expor meus reais sentimentos porque ninguém quer saber. Todos também estão afirmando uma mentira e têm problemas demais afogados em suas patéticas rotinas individuais, você não acha, Vanderlei?


Som de ocupado. Desligo. Ninguém assistiu ao enterro da minha última quimera.
Essa lei de cada um com seus problemas é tão mais cansativa.
Todas essas portas de comunicação fictícias entre seres humanos pra nada, porque estamos tão separados que nem toda a tecnologia do mundo vai juntar.
O telefone, por exemplo. Quase nunca toca e, quando toca, são só bonecos de plástico com vozes gravadas do outro lado da linha.
Não serve pra nada.



"Não escrevo a partir da sabedoria
quando o telefone toca
eu também gostaria de ouvir palavras
que pudessem aliviar um pouco alguma
dessas coisas.

é por isso que meu nome está na
lista."
Bukowski.

Werther

Ponderei e cheguei à conclusão de que existem basicamente dois tipos de pessoa no mundo. Existem Werthers e existem Charlottes. Independente do sexo.
Se eu sou Werther, e você é Werther, não podemos ficar juntos por muito tempo. Werthers terminam amando Charlottes, não importando as circunstâncias.
Se você é Werther, procura em mim a leveza dos que não amam. Procura em mim a vida dos extrovertidos. Procura em mim a estabilidade risonha (por vezes, falsa) das pessoas comuns.
Se eu sou Werther e você é Charlotte, meu amor tem razão de ser, mas isso não significa necessariamente algo bom.
Werthers são solitários na essência. Começam sozinhos e terminam sozinhos, não têm nada além do amor e do mundo construído na cabeça deles.
Se eu sou Werther e você não é, estamos muito, mas muito mais distantes do que eu gostaria.
Charlottes brilham em vida, Werthers brilham em morte. Você exala vida por todos os poros, e a mim só resta chegar o mais perto possível e absorver o máximo dessa vida enquanto o destino permitir.
Claro que não existiria livro sem Werther e existiria sem Charlotte, mas isso não me consola. A essência da vida é tentadora, mas é só combustível. O comburente sou eu.
É difícil esperar a dor pra brilhar. É difícil sofrer pra cumprir um papel. Às vezes queria ser diferente, queria não agonizar, queria não me fundir em estrela pelo resto dos tempos.
Mas aí eu não seria Werther, nem você minha Charlotte.
A história do amor precisa ser escrita. A história do mundo precisa continuar em sua sentimentalidade boba.
Temos um papel a cumprir, você e eu.
Começamos agora?

Volta

Vê se volta
que as paredes do meu quarto
me lembram toda hora
do que não está aqui.
Vê se volta
que as paredes do meu quarto
dão saudade de você.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Entrou no metrô. Sentiu-se fundir a todo o ambiente em volta. Viu-se derreter e misturar com as paredes do trem velho: amarelo-sem-cor.
Caminhou sem sentir até subir no ônibus de costume.
Estava com os olhos baixos e cheios de lágrima, por isso perdeu o seu ponto. Mascava um pão-de-queijo sem gosto quando levantou num salto e pediu pro motorista parar ali mesmo. Estava no meio da Anchieta.
Desceu do ônibus e começou a caminhar contra o vento. A poeira cansada batia no rosto dela e o gosto amargo do pó veio com o salgado do choro sendo engolido.
"Odeio chorar em público".
Olhou em volta: não tinha ninguém pra testemunhar seu fracasso. Andou devagar pelo meio da estrada, os carros passavam por um triz do corpo miúdo e os passos eram vacilantes, sem vontade.
Quando chegou na calçada, deu mais um gole na coca-cola e acendeu um cigarro. Ambos sem gosto. Na verdade, fazia algum tempo que ela não se lembrava de sentir o gosto de coisa alguma. A torta da mãe, o doce preferido na padaria. Nada. Algumas coisas que ela gostava chegavam até a causar enjôo. Só se dava conta de que estava fumando porque a fumaça arranhava de leve a garganta.
Do alto da passarela que a levaria pra casa ela viu os carros lá embaixo e encarou o asfalto que refletia, cintilante, a luz do sol. A ideia da morte nunca a atraiu, mas naquele momento ela imaginou nitidamente o corpo comprimido no chão e os carros passando por cima, atropelando o que restava da garota.
Olhou o cigarro pela metade.
"Não, ainda não."
Por mais ridículo que parecesse, não conseguia pensar em outra coisa que a impedia de saltar pro abismo senão o fumo inacabado entre os dedos da mão esquerda.
Chegou na sua rua e nunca se sentiu tão perdida. A casa estava a poucos metros de distância mas faltava algo muito maior, um sentimento de pertencimento que ela não conseguia encontrar em lugar nenhum. Ele tinha, a muito tempo, ido embora, talvez junto com o sabor dos alimentos.
Saiu do elevador e abriu a porta de casa. O sol entrava, triste, pela cortina quase transparente da sala.
A bateria do Ipod acabou e a música parou, de repente. A voz da Janis que saía dos fones era a única coisa que restava, e agora também tinha ido embora. Perguntou, em voz alta:
- Quem foi que desligou a música?
As cadeiras, as plantas e a coleção pequena de livros na estante nada responderam.
Estava só.


"'Alguém desligou a música?' fala, olhando a própia barriga. Elmo também reclama aos jogadores do Internacional. Onze deles, mais massagista, preparador físico e técnico estão afixados na porta do banheiro; o glorioso time de 79 e milhares de torcedores colorados empoleirados nas arquibancadas. Um silêncio sepulcral vela a interrogação. Ninguém responde nada."
Márcio Grings

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Acho que pode

- Boa noite, me vê uma dose de vodka.
Jogou as notas amassadas em cima do balcão. Passou a mão pelo cabelo muito claro e suspirou. Apoiou os cotovelos no mármore sujo.
O garçom abriu a garrafa de plástico e serviu as doses na frente dela, com ar de quem serviu doses pra garotas tristes a vida toda.
- Sabe, hoje eu fui demitida do meu emprego.
O garçom continuou a passar um pano encardido com álcool na pia pequena perto dali. Nem reagiu diante da declaração.
Ela bebeu o conteúdo num só gole e sentiu os olhos lacrimejarem de tão forte que era a bebida. Virou a cabeça pro lado e viu dois homens-abutre sorrindo em sua direção. Um deles não tinha os caninos.
Ela sabia o que eles estavam esperando. Eles achavam que eventualmente o corpo miúdo dela não aguentaria tamanha quantidade de álcool e que, com alguma sorte, ela teria mais dinheiro na bolsa e estaria tão bêbada que nem notaria quando um deles levasse sua carteira.
Sorriu. Obviamente, eles não conheciam a habilidade notória que ela tinha pra consumir destilados.
- Vê mais uma. Dupla.
O garçom voltou, como um robô, e encheu o mesmo copo, dessa vez com o dobro de líquido. Ela voltou a colocar notas avulsas e amassadas na direção dele.
- Na verdade, eu queria mesmo sair, não aguentava mais aquele servicinho de merda.
Por azar e sorte, o garçom estava bem na frente dela e assistia, sentado, o Globo Repórter numa televisão pequena que ficava do lado de dentro do balcão.
- Tive uma desilusão amorosa muito forte e tava querendo mesmo largar tudo, cair no mundo, sem rotina nem preocupação. Trabalhar é um saco, né? Vê mais uma.
O garçom nem levantou da cadeira de plástico e esticou o braço pra servir a garota mais uma vez. Ela quase nem esperou ele voltar a garrafa na posição normal pra consumir todo o líquido transparente. A essa altura, descia como água.
- Mas sabe, pior ainda que viver é se apaixonar. Puta coisa escrota. A gente fica nessa esperança ridícula de que dessa vez vai vingar, mas nunca vinga. Nunca.
O garçom levantou pra receber o dinheiro dos homens-abutre, que iam embora. O que não tinha caninos chupou o ar por entre os dentes, fazendo um barulho nojento.
Automaticamente, ele deu o troco e sentou no mesmo lugar.
Ela suspirou, mas era mais um soluço do que um suspiro. Sentiu que estava prestes a chorar, mas àquela altura ela não sabia mais se havia saído do estado entorpecido no qual se encontrava ou se era a vodka agindo.
- Mais uma.
Atirou mais uma vez o dinheiro, dessa vez com força, e a nota acabou caindo no chão.
- Você pode pagar quando sair, sabia?
A voz do garçom tinha um ar de afetação. Ele não gostou muito de ter que abaixar pra pegar os cinco reais que ela tinha jogado.
Depois de engolir rapidamente toda a bebida, ela passou os dedos, pensativa, nos vincos do copo americano. Nem subiu os olhos pra conferir se estava sendo ouvida.
- É foda isso. Já aconteceu com você? Se sentir tão importante quanto um saco de merda?
As bochechas já estavam vermelhas quando o garçom finalmente olhou pra ela. Ele abriu o freezer e colocou uma lata gelada de Coca-cola na frente da garota.
- É por conta da casa. Você vai precisar disso amanhã.
Ela sorriu. Escorregou com cuidado pela banqueta alta. Quando ficou de pé, vacilou. Era a vodka. Com toda a sinceridade, disse:
- Obrigada.
Virou as costas e já ia sair dali pra começar a caminhar os longos e poucos metros até seu apartamento. Ouviu o Globo Repórter ser interrompido pelos comerciais.
- Não é tão ruim, sabe?
Ela virou o corpo, espantada, pra ouvir o que o garçom tinha a dizer. Ele continuou:
- Merda pode sempre virar adubo.
Ela deu uma risada por entre lágrimas e foi obrigada a concordar.
- É, eu acho que pode.
Saiu do bar e encarou o velho mundo. Algo tinha mudado. Bem no fundo, uma chama muito fraca acendeu denovo no coração da garota. A consciência da transformação eterna da qual somos vítimas e a perspectiva de que tudo é cíclico a confortou de maneira surpreendente. Recomeçou a andar.
Um gato corria de um perigo imaginário pro outro lado da rua.
"É, eu acho que pode..."


- Comentário acrescentado no dia 03/10/2010, às 00h29.

A merdinha na qual estava
mergulhada
a minha vida
virou adubo.
Pequenos agentes de transformação
consumiram coliformes fecais
e transformaram em energia pura.

Agora o adubo floresce
por todos os lados possíveis.
Esses pequenos fungos,
agentezinhos de mudança
decompositória,
são os amigos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Quiet desperation

Acendi um cigarro
como quem acende
uma mágoa.
Traguei.
Soltei.
Foi destrutivo
e intensamente
prazeroso.
Sobrou só bituca
ainda acesa
indecomponível.
Quis apagá-la
e me livrar dela
mas o cinzeiro
estava lotado
de bitucas-mágoa
iguais àquela
até a borda.
Que me corrijam
se estiver errada
mas acho que criei
a analogia perfeita.
Esvaziar cinzeiro
é arte.


"Hanging on in quiet desperation is the english way."
Pink Floyd

Dream about your love

Entrei no trem, com os cabelos ainda bagunçados pelo vento da estação.
Sentei-me maquinalmente no primeiro assento que vi. Não precisava correr, pois naquela hora o metrô estava sempre vazio. Apenas um ou outro executivo voltava da hora de almoço isolado por um fone em cada orelha.
Esquecida de ser o metrô um lugar público, sorri com satisfação. A música que saía dos meus fones me fazia lembrar dele. Comecei a rir dos clichês tão óbvios e tão eternos que vivia naqueles dias.
Me senti olhada. Reparei que todos me observavam, talvez se perguntando o porquê do meu sorriso idiota. Baixei a cabeça. Não conseguia me conter. A alegria me inundava toda por dentro, nascia lá no meio do peito e subia em ondas incontroláveis que eu não conseguia disfarçar.
Passei os olhos pelas pessoas no metrô. Bem na minha frente, havia uma mulher de casaco vermelho que também sorria. Olhava pras próprias mãos e sorria, completamente alheia ao movimento do trem, à chegada e à partida de pessoas nas mais variadas estações.
Estivesse eu com outro humor, pensaria que a mulher estava louca. Teria raiva. Era crime passível de prisão perpétua sorrir sem motivos no metrô. Sendo aquele um dia chuvoso de segunda-feira na maior metrópole do país, a qualquer momento nós duas poderíamos ser ejetadas dos assentos para ter uma morte dolorosa e lenta entre o trem e a plataforma.
Os olhares se cruzaram. Trocamos outro sorriso, dessa vez de cumplicidade. Sabíamos o que ia no coração uma da outra. Nós duas tínhamos a mesma luz, a mesma devoção, a mesma... felicidade. O mesmo amor. Caminhávamos tentando esconder, mas era inútil. Fingíamos produtividade no trabalho, mas tudo que a gente via quando o chefe se distanciava era o amor, que enchia tudo de vida e fazia todas as tabelas de Excel parecerem inúteis.
Se amar era crime, então que chamassem toda a Cavalaria para fazer a prisão. Nós duas amávamos loucamente, e agora parecia que todos no vagão sabiam.
Não fosse a pequena aglomeração de pessoas pra descer na estação Ana Rosa, a distraída mulher continuaria pela eternidade ali, sentada no mesmo banco de metrô, sentindo amor. Ela respirou fundo, esfregou as mãos e levantou, resoluta.
A mim, pareceu que o seu amado estava esperando, paciente, ao final da escada rolante. Pareceu que ela se encorajava ainda mais pra encontrá-lo, como se a catracada da estação fosse um trampolim do qual ela finalmente mergulharia sem reservas na alma do seu grande amor.
Desejei boa sorte pra mulher de casaco vermelho. Eu a entendia profundamente. Quase eu também perdi minha estação-destino.
Reprovassem o quanto quisessem, os engravatados sufocados. Os mal-humorados de plantão. Os não-apaixonados com uma nuvem preta acima da cabeça. Eles pouco importavam, pois a mulher de casaco vermelho entendia meu sorriso de orelha a orelha.
Saí do vagão com muitas certezas em mente. O amor ainda existia em sua forma mais primitiva. Que existisse só nos olhos de duas mulheres aleatórias no metrô, ele ainda estava lá e provocava reações por onde quer que passava.
Quando saí da Estação Brigadeiro reparei, com satisfação, que a garoa tinha parado e que o sol estava brilhando, vitorioso. Eu sabia o porquê. A mulher de casaco vermelho sabia porquê. Tínhamos vencido.



"So dream, babe, about the one you love.
This way you're gonna fill the world with love.
This way you're gonna face all your days with certainlies.
Babe, babe, babe, dream about your love."
Vanguart