quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Acho que pode

- Boa noite, me vê uma dose de vodka.
Jogou as notas amassadas em cima do balcão. Passou a mão pelo cabelo muito claro e suspirou. Apoiou os cotovelos no mármore sujo.
O garçom abriu a garrafa de plástico e serviu as doses na frente dela, com ar de quem serviu doses pra garotas tristes a vida toda.
- Sabe, hoje eu fui demitida do meu emprego.
O garçom continuou a passar um pano encardido com álcool na pia pequena perto dali. Nem reagiu diante da declaração.
Ela bebeu o conteúdo num só gole e sentiu os olhos lacrimejarem de tão forte que era a bebida. Virou a cabeça pro lado e viu dois homens-abutre sorrindo em sua direção. Um deles não tinha os caninos.
Ela sabia o que eles estavam esperando. Eles achavam que eventualmente o corpo miúdo dela não aguentaria tamanha quantidade de álcool e que, com alguma sorte, ela teria mais dinheiro na bolsa e estaria tão bêbada que nem notaria quando um deles levasse sua carteira.
Sorriu. Obviamente, eles não conheciam a habilidade notória que ela tinha pra consumir destilados.
- Vê mais uma. Dupla.
O garçom voltou, como um robô, e encheu o mesmo copo, dessa vez com o dobro de líquido. Ela voltou a colocar notas avulsas e amassadas na direção dele.
- Na verdade, eu queria mesmo sair, não aguentava mais aquele servicinho de merda.
Por azar e sorte, o garçom estava bem na frente dela e assistia, sentado, o Globo Repórter numa televisão pequena que ficava do lado de dentro do balcão.
- Tive uma desilusão amorosa muito forte e tava querendo mesmo largar tudo, cair no mundo, sem rotina nem preocupação. Trabalhar é um saco, né? Vê mais uma.
O garçom nem levantou da cadeira de plástico e esticou o braço pra servir a garota mais uma vez. Ela quase nem esperou ele voltar a garrafa na posição normal pra consumir todo o líquido transparente. A essa altura, descia como água.
- Mas sabe, pior ainda que viver é se apaixonar. Puta coisa escrota. A gente fica nessa esperança ridícula de que dessa vez vai vingar, mas nunca vinga. Nunca.
O garçom levantou pra receber o dinheiro dos homens-abutre, que iam embora. O que não tinha caninos chupou o ar por entre os dentes, fazendo um barulho nojento.
Automaticamente, ele deu o troco e sentou no mesmo lugar.
Ela suspirou, mas era mais um soluço do que um suspiro. Sentiu que estava prestes a chorar, mas àquela altura ela não sabia mais se havia saído do estado entorpecido no qual se encontrava ou se era a vodka agindo.
- Mais uma.
Atirou mais uma vez o dinheiro, dessa vez com força, e a nota acabou caindo no chão.
- Você pode pagar quando sair, sabia?
A voz do garçom tinha um ar de afetação. Ele não gostou muito de ter que abaixar pra pegar os cinco reais que ela tinha jogado.
Depois de engolir rapidamente toda a bebida, ela passou os dedos, pensativa, nos vincos do copo americano. Nem subiu os olhos pra conferir se estava sendo ouvida.
- É foda isso. Já aconteceu com você? Se sentir tão importante quanto um saco de merda?
As bochechas já estavam vermelhas quando o garçom finalmente olhou pra ela. Ele abriu o freezer e colocou uma lata gelada de Coca-cola na frente da garota.
- É por conta da casa. Você vai precisar disso amanhã.
Ela sorriu. Escorregou com cuidado pela banqueta alta. Quando ficou de pé, vacilou. Era a vodka. Com toda a sinceridade, disse:
- Obrigada.
Virou as costas e já ia sair dali pra começar a caminhar os longos e poucos metros até seu apartamento. Ouviu o Globo Repórter ser interrompido pelos comerciais.
- Não é tão ruim, sabe?
Ela virou o corpo, espantada, pra ouvir o que o garçom tinha a dizer. Ele continuou:
- Merda pode sempre virar adubo.
Ela deu uma risada por entre lágrimas e foi obrigada a concordar.
- É, eu acho que pode.
Saiu do bar e encarou o velho mundo. Algo tinha mudado. Bem no fundo, uma chama muito fraca acendeu denovo no coração da garota. A consciência da transformação eterna da qual somos vítimas e a perspectiva de que tudo é cíclico a confortou de maneira surpreendente. Recomeçou a andar.
Um gato corria de um perigo imaginário pro outro lado da rua.
"É, eu acho que pode..."


- Comentário acrescentado no dia 03/10/2010, às 00h29.

A merdinha na qual estava
mergulhada
a minha vida
virou adubo.
Pequenos agentes de transformação
consumiram coliformes fecais
e transformaram em energia pura.

Agora o adubo floresce
por todos os lados possíveis.
Esses pequenos fungos,
agentezinhos de mudança
decompositória,
são os amigos.

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