sexta-feira, 4 de março de 2011

Algodão

Me sinto como Bukowski
numa noite escura de inverno.
Veja, imagino que seja inverno
porque ninguém deseja algodão
se não estiver frio lá fora.

O ponto é:
eu me sinto como Bukowski,
que só queria garotas
limpas e calmas
em vestidos de algodão.
Pra te falar a verdade,
eu acho que o pobre Charlie
só queria uma paz
que durasse mais
que uma gozada.
Ele nem se importava
com vestido nenhum.

Aí eu te pergunto,
Charles Bukowski,
Onde é que estão
todos aqueles garotos
calmos e limpos
com camisetas brancas
e corações sem mancha
feitos de algodão macio
enquanto os artistas, os bêbados e os publicitários
continuam me encontrando?

Ela

Ela
está sempre aqui.
Acabou de chegar,
ou está de saída na porta,
ou segura o elevador pra mim,
ou fica parada na frente
da estante de livros,
mas está sempre presente
em tudo que sinto.
Se sinto amor,
vejo seus olhos
me encarando
no espelho do banheiro
Se não sinto,
é ela quem assopra o chá
e passa a mão na minha cabeça.
Que raio de presença é essa,
que não vai embora,
nem diminui,
mas só aumenta
a ponto de me fazer
querer estourar os miolos
e mandar pro diabo
de uma vez
essa merda toda?
Presença não quista,
influência mal vista,
sentimento maldito,
não dito, infinito.
Melancoliazinha filha da puta!
É você? Pode entrar.

Próxima volta

Quando imaginei o que a vida reservava pra nós dois, esperava muito. Esperava fogos de artifício. Esperava consumir toda minha energia na fogueira alta dos sentimentos. Esperava que queimássemos juntos, você e eu, nas chamas do amor jovem, do amor paralisante, do amor que desconhece tempo, e que por desconhecer o tempo é eterno e transitório em sua essência.
Esperava tudo, menos isso. Esperava tudo, menos a realidade.
Já me falaram uma vez que a consumação de um sonho o destrói por completo. Eu, como boa ariana que sou, ansiava e temia o fatídico, porém inevitável, momento de encontro entre nossos corpos. Eu, como boa ariana que sou, temia que esse sonho morresse, junto com tantos que duraram dias, alguns semanas, outros minutos.
Temia a evaporação do sentimento. Gosto de sentir, e sentir por ele é algo especialmente prazeroso por alguma razão desconhecida por mim, mas conhecida pela inteligência maior que arma e desarma encontros nesse planeta.
Sem pensar em mais nada, no entanto, atendi ao chamado que me foi feito. Com uma pequena prece, caminhei decidida para o mundo encerrado entre os braços dele.
Por algum motivo que eu temo definir, oh meus irmãos, a realidade foi muito, mas muito melhor que qualquer coisa que meu coração afobado pudesse imaginar.
A realidade me deu algo que eu jamais poderia ter criado. Nunca, nos meus sonhos mais selvagens, nas minhas noites mais longas sorrindo, sentada na beirada da cama olhando o céu, eu poderia criar o que a realidade me reservava.
A realidade me deu detalhes.
Detalhes sublimes que eu lembro com um sorriso leve no rosto.
O cheiro da pele. O toque das mãos. A espessura do cabelo. O gosto da boca. A falha na barba, bem embaixo do queixo. O perfume dele, que ficou nos lençóis. O jeito que ele fala ao telefone. O jeito que coloca batata palha por cima de todo o strogonoff, metodicamente, antes de comer. O jeito que ele dorme, sem me largar um minuto sequer. O jeito que ele segura minha mão quando caminhamos em público e o jeito que eu me deixo levar, numa confiança cega.
Com o coração disparado, penso em meu íntimo que valeu a espera. Valeria mil anos de espera, se assim fosse. Valeu todas as decepções anteriores. Os minutos de montanha-russa definitivamente valeram as horas em pé na fila do parque.
Refeita da enxurrada de sensações, percebo-me dependente e viciada (pasmem) na droga inebriante da realidade.
Sem saber quanto tempo vai levar até a próxima volta, vou denovo pra fila do brinquedo, com animação igual ou maior que a anterior.
Não posso evitar. Sou humana. Sou mulher.

Janela

Eu estava deitado, com os braços atrás da nuca. Ela levantou da cama, acendeu um cigarro e abriu uma fresta de janela. Já tinha amanhecido.
As pontas dos cabelo iam de um lado pro outro com o vento encanado que entrava e refletiam a luz do sol, que já brihava com toda a força.
- Tem um mundo lá fora, sabia? A gente aqui, isolado, prestes a dormir. E lá fora as pessoas estão acordadas, cuidando de suas obrigações. Só que aqui dentro tudo tem muito mais vida. Não acha?
A luz que entrava pela fresta era mais branca que o pijama dela e dava a todo o quarto um quê angelical. Virei pro lado e com um sorriso, pedi:
- Descreve pra mim.
- Tem um velhinho andando devagar. Tem uma moto passando, e ela parou no sinal vermelho. Uma mulher passeando com o cachorro acabou de atravessar a rua. Tem outra moça descendo a ladeira com um carrinho de feira.
Ela olhou pra mim, fechou a fresta de janela e chegou mais perto. Dei lugar na cama pra ela. O sol não entrava mais no quarto mas eu ainda via o corpo dela muito iluminado. O rosto, o cabelo, as mãos, o colo. O pijama muito branco.
Ela chegou bem perto de mim e me beijou na boca.
O quarto não estava mais escuro e toda aquela luz, bem...aquela luz eu tinha certeza que saía dela.