segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Escolha um fardo

Quando acordei, estava num colchão no chão do quarto dela. Ela dormia profundamente na sua própria cama. No criado-mudo ela deixou todo tipo de comprimidos pra ressaca, uma garrafa cheia de água e um balde, caso eu quisesse vomitar. Levantei, tomei uma aspirina e voltei a deitar, totalmente sem forças pra questionar qualquer coisa. Só quando o remédio começou a fazer efeito foi que eu lembrei tudo que tinha acontecido.
Eu já estava a não sei quantas horas deitado na calçada quando ela me achou. A princípio não percebi que era ela. Era um alguém qualquer que passou a mão na minha cabeça e me levantou até eu ficar sentado. Permaneci de olhos fechados.
- Gente, espera. Não posso deixar ele aqui - ela dizia e tentava me levantar. Chegou mais perto, senti o perfume. Era ela, sem dúvida nenhuma.
- Você conhece esse cara?
- Conheço. Não posso deixar ele assim, me ajuda a carregar ele pro carro.
- Eu não vou levar isso aí no meu carro, não. E se ele vomitar e sujar tudo?
- Se você não me ajudar, eu levo sozinha. Minha casa não é tão longe.
- A escolha é sua.
Ouvi enquanto as outras pessoas se afastavam. Ela tentava me levantar enquanto dizia:
- Vai ficar tudo bem. Eu vou levar você pra casa, você vai melhorar.
Pra casa? Ela ia me levar pra qual casa, a dela ou a minha? Se fosse pra dela eu não queria ir, ela sabia de todos os motivos, já tinhamos conversado sobre isso uma infinidade de vezes. Pra casa dela eu não queria ir de jeito nenhum.
Fazia meu máximo pra ficar de pé, mas ainda assim meu corpo bêbado era pesado pra ela. Parei pra vomitar duas vezes no percurso. Ela segurava minha cabeça e continuava falando palavras doces, até que parou.
- Pronto, não falei que ia ser logo? A gente já chegou.
Ela abriu a porta, me sentou no sofá da sala e tirou meu tênis, minha camiseta. Me levou até o chuveiro e abriu a torneira.
- Ainda tem algumas roupas suas aqui. Vou lavar essas - dizia enquanto me deixava completamente nu.
Eu já tinha caído no chão do banheiro quando ela fechou a porta. Sentia a água correr pelo meu corpo mas não conseguia abrir os olhos nem por decreto. Tinha ânsia mas não saía nada.
Nem sei quanto tempo fiquei parado ali, debaixo d'água. Ela abriu a porta do box e fechou a torneira.
- Chega de água né? - tinha uma toalha nas mãos e começou a me enxugar. Sentei na privada fechada do banheiro enquanto ela esfregava, devagar, o meu cabelo molhado.
- Olha, suas roupas devem secar até amanhã. Por enquanto coloca essas. - e deixou na minha mão uma camiseta, uma cueca e uma bermuda de pijama que eu tinha esquecido lá fazia algumas semanas.
Saiu e fechou a porta. Com alguma dificuldade, coloquei a camiseta e a cueca. Depois disso, encostei a cabeça na parede e perdi a consciência. Ela deve ter me carregado pro quarto.
"Só podia ser isso."
Entre pensamentos, voltei a dormir. Quando acordei, algumas horas depois, o quarto estava vazio. Abri a porta e ela lia na sala, o sol entrava pela janela e o som estava ligado, bem baixinho.
Ela não reparou minha presença e continuou lendo, concentrada. Ás vezes tragava o cigarro e desviava os olhos do livro pra não errar o cinzeiro.
Ela era linda e não houve um só dia no qual eu não pensasse nela, desde que tudo havia terminado. Quando eu deixei algo tão bom quanto ela virar uma ameaça pra mim? Afinal, o que eu temia tanto? Qual dos fardos é o mais leve, o do medo ou o da saudade?
Ela olhou pra mim de supetão e começou a gargalhar.
- Qual é a graça?
- Você devia se olhar no espelho. Está parecendo um fantasma.
Olhei pra baixo e vi que estava quase nu. Tarde demais.
- Senta aqui, que eu vou pegar alguma coisa pra você beber. Sua roupa deve estar quase seca.
Sentei no sofá enquanto escutei ela colocar gelo no meu copo.
"Com gelo, do jeito que eu gosto. A desgraçada só acerta."
- Coca com gelo, do jeito que você gosta, né?
- Obrigado.
Ela voltou a posição anterior e ficamos em silêncio.
- Tá lendo o que?
Ela colocou o livro de lado antes de responder.
- Nada demais. Já tá melhor?
- Tô sim, obrigado por tudo. Desculpa o trabalho...
- Que trabalho, que nada. Você não incomoda.
Saco. Agora ela estava me olhando daquele jeito, parecia que decifrava tudo, não tinha como esconder nada dela. Baixei a cabeça.
- Não sei porque não confio em você. Desculpe.
- Você não confia em mim porque não quer. Nós dois sabemos disso.
- Não, não é isso...eu não quero fugir de você, eu quero confiar em você, eu quero você, mas...
Ela chegou com o corpo bem perto do meu e continuou me olhando. Se eu não fizesse nada, o pior ia acontecer. Se eu não esboçasse movimento ou reação verbal, ela me beijaria e apertaria, com luva de pelica, o botão que detonaria toda a sanidade que ainda restava em mim.
O que fazer, meu Deus?
Olhando pra ela eu chamava por Deus, mas que diabos! Eu nem acredito nele. Respirei fundo e tentei pensar.
"Calma, cara, você precisa racionalizar. Pense: o que você quer? 'Meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer.' Coitado do Mário de Andrade, ele era só mais um desgraçado, como eu."
Engoli em seco.
"Decide, infeliz! Qual cruz você quer carregar? Afinal, nesta merda de vida ingrata, qual dos fardos é o mais leve, o do medo ou o da saudade?"

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