quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Lápis

Chegou em casa, acendeu a luz. O branco do papel atingiu-lhe as retinas e quando deu por si, já estava sentada em frente a mesa.
Baixou os olhos e suspirou. Previu outra noite em claro, relembrando detalhes, refazendo diálogos, reconstruindo sua particular cena do crime.
Crime sem morte.
Nem a dela mesma, por mais que desejasse isso.
Pegou o lápis. Apontou.
Maldita semente. Maldito gerador de idéias ligado dentro dela. Maldito sentimento acordando milhões de palavras que gritavam até serem postas pra fora.
Maldito amor.
Ela olhou em volta e riu, com pena de si.
Mais um papel escrito não significava nada pra ela.
Tinha gavetas deles.
Primeiro era o brilho, a euforia, a luz que cegava tudo. Depois era a decepção e no fim das contas, ela se sentava naquele mesmo lugar pra mais uma sessão de quimioterapia cruel, que destruía o sentimento e junto destruía (quem sabe muito mais) o interior dela mesma.
Sentiu raiva.
Pensamento é doença dos olhos, não é isso que haviam lhe dito? Então o amor, que desencadeava tudo aquilo, era doença? Era câncer asqueroso que a impedia de olhar o céu, de sentir o gosto do café, de se esquentar ao sol?
Nada ia mudar. Escrevesse ela uma Bíblia, nada ia mudar. Suas emoções nunca seriam mais brandas. Ela era assim desde pequena.
Olhou o próprio corpo. Havia crescido, e era adulta agora. Tinha caixinhas de leite pra comprar, contas de luz pra pagar, chefe pra obedecer. Se dormisse agora, teria ainda três horas de sono decente antes de o despertador tocar.
Olhou o lápis, sem suportar mais o peso dos próprios pensamentos.
Precisava mesmo daquela catarse escrava e infeliz?
Olhou os calos nas mãos. Lembranças de outras noites, mais longas que aquela, mais frias que aquela, vieram-lhe a cabeça.
Sorriu. Sentiu-se livre.
Rasgou o papel nos pedacinhos mais pequenos que conseguiu.
Depois, fechou os olhos e, com um estalo, quebrou o lápis.

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