quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Cuidado

Depois de algumas horas juntos, muitas pro mundo e poucas pra ela, os dois andavam de mãos dadas até o ponto onde passaria o ônibus que o levaria pra casa. Ela estava com o braço em volta dele, numa tentativa inútil de mantê-lo ali, com ela, longe dos afazeres do mundo e das obrigações cotidianas que afastavam os dois de maneira cruel.
O ônibus se aproximou do ponto e eles levantaram juntos em total silêncio. Beijaram-se tão longamente quanto o momento permitiu e trocaram palavras de despedida. Quando ela se soltou totalmente dos braços dele, ouviu ele dizer em voz mais alta:
- Cuidado, tá?
Ela virou as costas e começou a caminhar os poucos metros até seu apartamento com aquilo na cabeça. Cuidado?
Ele se preocupava com ela. Queria que ela tivesse cuidado.
Ela olhou em volta. Como nunca tinha feito antes na vida, verificou se estava sendo seguida. De repente, tudo ficou extremamente perigoso. Eles ainda tinham muito por viver, e para isso era preciso que eles continuassem inteiros, logo, era preciso que ela tivesse cuidado.
Anos de loucura, de atravessar a rua sem temer o carro que vinha, de dirigir acima do limite de velocidade permitido à noite, de beber além da conta nos finais de semana, de descuidar da saúde, de andar com os cadarços do tênis desamarrados e de tomar remédios sem prescrição médica passaram pela cabeça dela.
Será que o modo como ela tinha vivido nesses vinte anos de existência tinham sido colocados em cheque por uma simples palavra ao final de uma despedida?
Cuidado! Ironia da parte dele pedir pra ela que tivesse cuidado. Ele não a conhecia? Não sabia que ela nunca tivera medo da morte, medo do perigo, medo do risco de qualquer coisa? Como pedir isso justamente a ela?
Quando entrou em casa, verificou duas vezes se a porta estava realmente trancada.
Anos de vida desregrada foram por água a baixo.
Cuidado. Ele pediu para que ela tivesse cuidado e, daquele momento em diante, ela se cuidaria por causa do amor.


"Que ela se defenda, a minha amiga
Contra tudo o que anda, voa, corre e nada, e que se lembre
Que devemos nos encontrar, e para tanto
É preciso que estejamos íntegros, e acontece
Que os perigos são máximos, e o amor de repente, de tão grande
Tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil."
Vinícius de Moraes

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